quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A HSTÓRIA DE TERRY


A HSTÓRIA DE TERRY


Um ponto marcante na minha vida aconteceu um dia, num trem nos subúrbios de Tóquio. Era o meio de uma preguiçosa tarde de primavera e o vagão estava relativamente vazio - umas poucas donas de casa indo às compras junto com os filhos, algumas pessoas idosas, um par de garçons no dia de folga lendo o resultado das corridas. O vagão velho e barulhento estava de uma maneira monótona sobre os trilhos, enquanto eu espiava distraidamente as casas desbotadas e as sebes empoeiradas.

Numa pequena estação sonolenta, as portas se abriram e a tarde modorrenta foi quebrada por um homem berrando a plenos pulmões. Uma série de violentas imprecações vibraram no ar. Pouco antes das portas fecharem, o homem ainda gritando, entrou cambaleando no vagão. Era um enorme operário japonês, bêbado e imundo. Seus olhos injetados pareciam dois faróis vermelhos e sua face estava rubra de raiva e ódio. Gritando palavras ininteligíveis, avançou contra a primeira pessoa que viu - uma mulher segurando um bebê. O golpe pegou de raspão no seu ombro, mas a fez rodar pelo carro até cair sobre um casal idoso. Foi um milagre o bebê sair ileso. O casal se levantou num salto e fugiu para o outro lado do vagão. O operário mirou um chute nas costas da anciã. "Sua velha vadia", ele urrou, "Vou chutar seu rabo". Ele errou e a velha senhora escapou para longe do seu alcance. Completamente fora de si, o bêbado agarrou uma das barras de ferro no centro do vagão e tentou arrancá-lo do seu encaixe; pude ver que uma das suas mãos estava sangrando. O trem seguia balançando, os passageiros mortos de medo. Fiquei de pé.

Naquela época eu era um jovem e estava em boa forma. Tinha 1,83 m de altura, pesava 102 Kg e treinava oito horas de aikidô por dia há três anos. Eu estava totalmente obcecado pelo aikidô, não me cansava de praticar. Gostava principalmente dos treinos mais difíceis. O problema era que minha habilidade nunca fora testada numa luta de verdade. Éramos severamente proibidos de utilizar em público as técnicas do aikidô, a não ser quando fosse absolutamente necessário defender outras pessoas. Meu mestre, o fundador do aikidô, nos ensinava todas as manhãs que o aikidô não era violento. O aikidô, ele sempre repetia, "É a arte da reconciliação. Usá-lo para fortalecer o ego, ou para dominar outras pessoas, é trair totalmente o seu propósito. Nossa missão é solucionar conflitos, não gerá-los". Eu escutei suas palavras, é claro, e até cheguei a atravessar a rua algumas vezes para evitar grupos de desordeiros que poderiam ter me oferecido uma briga para testar as minhas habilidades. Nos meus devaneios, porém, eu desejava uma situação legítima para defender os inocentes, arrasando com os culpados. E essa situação havia aparecido na minha frente, para minha grande alegria. Meus pedidos haviam sido atendidos. Pensei com meus botões: esse cafajeste, esse animal, está bêbado, grosseiro e violento. É uma ameaça à ordem pública e vai ferir alguém se eu não agir. A necessidade é real. Meu sinal ético está  verde.

Ao ver-me de pé, o bêbado me fuzilou com os olhos. "Arrá", rugiu ele, "Um moleque cabeludo estrangeiro precisa de uma lição de boas maneiras japonesas". Eu estava segurando a alça do trem, aparentemente desequilibrado, fingindo desinteresse.

Olhei para ele com desprezo insolente, que queimou no seu cérebro como uma brasa na areia molhada. Eu o faria em pedaços. Ele era grande e mau, mas estava bêbado. Eu era grande, mas treinado e completamente sóbrio. Ele berrou "Você quer uma lição sua besta?". Eu não disse nada, mas lancei-lhe um olhar gélido. Ele se preparou para vir para cima de mim com toda a força. Ele nunca iria saber o que o atingira.

Uma fração de segundo antes de ele se mover, alguém gritou "Ei", bem alto. Foi um som agudo quase ensurdecedor, mas com uma estranha alegria - como se você  e um amigo estivessem procurando algo e ele subitamente encontrasse o que buscava.

Girei para a minha esquerda e o bêbado para a direita. Nós dois vimos um velhinho. Ele devia ter mais de setenta anos, esse senhor minúsculo, impecável no seu quimono e hakama. Ele não me deu nenhuma atenção, mas sorriu alegremente para o operário, como se fosse dividir um segredo importante e agradável.

"Vem cá", chamou o velhinho. "Vem cá falar comigo". Ele acenou levemente e o bêbado seguiu como se estivesse preso a um barbante. Ele estava confuso, mas ainda agressivo " O que você quer seu velho idiota?", ele perguntou, rugindo mais alto que o barulho do trem. O bêbado agora estava de costas para mim. Eu podia ver os seus cotovelos, dobrados como se estivesse pronto para socar. Se eles se movessem um milímetro, eu o acertaria.

O velho continuou a sorrir. Não havia nele nenhum traço de ressentimento ou medo. "O que você andou bebendo?", perguntou, os olhos brilhando de interesse.

"Eu estava bebendo saquê, seu porco sujo", gritou o operário, "O que você tem a ver com isso?"

"Oh, isso é maravilhoso", deliciou-se o velho, "absolutamente maravilhoso!. É que eu adoro saquê. Toda noite eu e minha esposa (ela tem 67 anos, sabe?) aquecemos uma garrafinha de saquê e levamos para o jardim, onde sentamos no velho banco que um estudante do meu avô fez para ele. Nós vemos o sol se pôr e como está a nossa árvore. Meu avô plantou aquela árvore, você sabe, e estamos preocupados para saber se ela se recuperará dessa tempestade de granizo do último inverno. Caquizeiros não se recuperam bem depois de tempestades de granizo, embora eu deva dizer que o nosso tenha se saído melhor do que eu esperava, especialmente quando você leva em conta a má qualidade do solo. Mas, de qualquer maneira, levamos mossa garrafa de saquê e apreciamos o anoitecer junto da nossa árvore. Mesmo quando chove!" Ele sorriu para o operário, seus olhos brilhando, feliz por compartilhar a informação maravilhosa.

Enquanto tentava seguir a intrincada conversa do velho, a expressão do bêbado foi se atenuando. Seus punhos se abriram lentamente. "É", disse ele, quando o velhinho terminou, "Eu também gosto de saquê..." Sua voz foi diminuindo.

"Sim", sorriu o velho, "e eu estou certo que a sua mulher é maravilhosa".

"Não", replicou tristemente o operário, "eu não tenho mulher". Ele deixou pender a cabeça e balançou silenciosamente, acompanhando o movimento do trem. E então, com uma surpreendente suavidade, começou a a soluçar. "Eu não tenho esposa", gemeu ritmicamente, "eu não tenho casa, eu não tenho roupas, eu não tenho ferramentas, eu não tenho dinheiro e agora eu não tenho um lugar para dormir. Eu estou tão envergonhado". Lágrimas rolavam pelo rosto do grandalhão  e um espasmo de puro desespero sacudiu o seu corpo. Acima do bagageiro, um anúncio colorido exaltava as virtudes da vida luxuosa dos subúrbios. A ironia era quase insuportável. e subitamente senti-me envergonhado. Me senti mais sujo nas minhas roupas limpas e na minha pose de tornar o mundo seguro para a democracia do que aquele operário jamais se sentiria.

"Ora, ora", riu compassivamente o velhinho, embora a sua alegria não diminuísse. "É realmente uma situação muito difícil. Por que não se senta aqui e me fala sobre isso?"

Nesse momento, o trem parou no meu ponto. A plataforma estava cheia e a multidão avançou para dentro do vagão assim que as portas se abriram. Manobrando para sair, olhei para trás pela última vez. O operário estava esparramado como um saco no banco, com a sua cabeça no colo do velhinho. O ancião olhava para ele generosamente, uma mistura beatífica de deleite e compaixão brilhando nos seus olhos, uma das mãos acariciando a cabeça suja.

Enquanto o trem saia da estação, eu me sentei num banco e tentei reviver a experiência. Vi que o que eu estava preparado para conseguir com osso e músculo fora realizado com um sorriso e algumas palavras gentis. Reconheci que vira o aikidô em ação e que sua essência era a reconciliação, como o fundador dissera. Me senti estúpido, grosseiro e brutal. Soube que teria que praticar com um espírito totalmente diferente e que um longo período se passaria antes que eu pudesse falar com conhecimento de causa sobre o aikidô ou sobre a solução de conflitos.

História extraída do: "O LIVRO DO PERDÃO O CAMINHO PARA O CORAÇÃO TRANQUILO, editora Rocco, 3ª edição, de autoria de Robin Casarjian.








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